PRIMEIROS MOMENTOS DO CONJUNTO CEARÁ
O ano: 1977. Embora não inaugurado ainda, começavam a chegar os primeiros moradores, que, cheios de esperança, enfrentariam, além da distância, uma infraestrutura inacabada, resultado de uma disputa de poder no Estado
INÍCIO DOS ANOS 70
O Brasil, no início da década de 70, vivenciava o apogeu das políticas das grandes obras dos governos militares. A economia impulsionada por um grande volume de empréstimos internacionais crescia a cada ano gerando o “milagre brasileiro”, que mais tarde traria o endividamento, a recessão e notória desigualdade de distribuição de renda na década de 80.
Na política habitacional não seria diferente. Grandes conjuntos habitacionais foram planejados e iniciados, financiados pelo Banco Nacional de Habitação - BNH, por meio das Companhias de Habitação – COHABs, em todo o país.
O critério da quantidade, que mostrava resultado imediato em detrimento à qualidade das moradias, foi um dos aspectos da política habitacional da época, e pouco ou quase nada se discutiu sobre a qualidade espacial das intervenções urbanísticas, montadas para abrigar milhões de brasileiros e consequentemente, o seu impacto na vida dessas pessoas.
Aqui em Fortaleza, para garantir o funcionamento dos distritos industriais que estavam sendo inseridos fora dos seus limites e levar mão de obra suficiente par viabilizar a atração de novas indústrias, foram projetados vários conjuntos habitacionais, na fronteira sul e sudoeste da cidade, próximos as linhas férreas. Estas intervenções definiram eixos de expansão da malha urbana em direção aos municípios vizinhos de Maranguape, Maracanaú e Caucaia, iniciando um processo de interligação entre esses municípios.
O plano de construir conjuntos habitacionais na fronteira do município não estava dissociada da estratégia de produzir a valorização dos terrenos existentes entre as áreas a serem urbanizadas e o centro. O porte dessas intervenções demandaria ações por parte do poder público na mobilidade e construção de equipamentos urbanos para a população deslocada. Esta infraestrutura teria fatalmente que cruzar fazendas e terras de propriedade de influentes famílias da elite local, provocando aumento no valor dessas.
Foi desta maneira que duas fazendas ESTIVAS E VENEZA e alguns outros terrenos foram usados para a implantação de um grande Conjunto Habitacional, o Conjunto Ceará, construído em etapas, inauguradas nos anos 1977,1978, 1979 e 1981, na região sudoeste de Fortaleza, situado entre a Granja Portugal, João XXIII e a Linha férrea de Sobral.
Essas áreas, em sua maioria de baixadas e áreas alagáveis no período de chuvas, eram compostas por uma vegetação rasteira intercalada por carnaubais, servido de pasto para rebanhos e coleta de folhas de carnaúba, para o aproveitamento da cera, por alguns caseiros, que viviam nas propriedades em casas de taipa.
O CONJUNTO CEARÁ ERA CONJUNTO CONFIANÇA
Em 1974, no Governo do César Cals (1971-1975), a Companhia de Habitação do Ceará abre licitação para a construção da 1a Etapa do “Conjunto Confiança”. O leitor deve ter estranhado o nome “confiança”, pois era o nome do Conjunto Ceará no início do projeto de construção. Atrelava assim o nome do Conjunto Habitacional ao slogan “Governo da Confiança”, no intuito de capitalizar politicamente o feito e eternizar o gestor que havia iniciado a obra. Por vários meios de comunicação, o anúncio de inscrição para o “Conjunto Confiança” chegou a muita gente, principalmente para casais novos, que não tinham a casa própria, mas possuíam renda comprovada.
AGORA É CONJUNTO CEARÁ
REINSCRIÇÕES E NOVOS SORTEIOS
Centenas de inscritos na COHAB ficaram aguardando o chamamento, por meio de carta, para o dia do sorteio, pois o número de candidatos era bem superior ao número de casas. Alguns fatos políticos interferiram na finalização da 1a. Etapa do Conjunto Confiança, que não foi concluída até o final do Governo César Cals. Então, no início do governo de seu sucessor e adversário político, o Cel. Adauto Bezerra (1976-1979), o nome do Conjunto Habitacional foi alterado para“ Conjunto Ceará”, fazendo que todos os inscritos retornassem à COHAB-CE, para confirmação da inscrição e entrega de atualizados comprovantes de renda até o final de 1976.
Fevereiro de 1977, a COHAB inicia o procedimento para o sorteio e orientação aos futuros mutuários das Uvs 1 e 6 (1a. Etapa). Muitos sorteados, antes de receberem as chaves e o kit (torneiras, ralos, assento sanitário, armadores) visitavam as obras que estavam ainda sendo finalizadas, principalmente no saneamento e calçamento das avenidas. Pegavam o ônibus da Granja Portugal que ia até a praça na rua Emílio de Menezes e, depois, caminhavam em terra batida até o início da Avenida “A” do Conjunto Ceará. Como na época era um período de chuvas intensas, a lama sempre estava presente nessas idas e vindas.
Nos meses de março e abril de 1977 foram realizados os primeiros sorteios. O primeiro, no auditório do DAE, hoje sede do Ministério Público do Estado, na rua Assunção, nº 1.100 e as demais na Av. Santos Dumont, nº 1420, na sede da COHAB.
Na oportunidade, os técnicos da COHAB informavam como era a moradia, as obrigações do morador (mutuário) e explicavam as cláusulas do contrato. Falavam também da convivência entre vizinhos, pediam para cuidarem da casa, plantarem jardins e entregavam folders sobre o programa de habitação. Chamado o inscrito, esse ia até um saco, colocava a mão e tirava o número da rua, depois, em outro saco o número da casa.
As primeiras famílias, já com as chaves na mão e o kit (torneiras, ralos, assento sanitário, armadores), se mudaram e ocuparam suas casas. Na maioria, única família de uma rua, por vários dias. Começava assim a saga dos moradores do Conjunto Habitacional Ceará, um dos maiores da América Latina.
O grupo de primeiros mutuários, que ocupou a 1a. Etapa, era formado por jovens casais, muitos ainda sem filhos, que enxergaram aquele momento como especial, pois muitos moravam pagando aluguel ou em casas de parentes.
As casas da 1a. Etapa formavam as Unidades de Vizinhanças 1 e 6, sendo que, na unidade UV1, as fundações das casas eram profundas e o baldrame com quase um metro de altura, pois foram construídas em terreno declivado ou alagável.
As divisas das casas eram feitas apenas por estacas de um metro, com arames lisos, não havendo privacidade nos quintais ou em suas frentes.
As avenidas e ruas estavam inacabadas, tendo trechos com valas para a canalização de esgoto ou já destruídas pelo grande volume de tráfico de caminhões rumo à 2a. Etapa já em construção.
Justificavam, as autoridades, que o Conjunto Ceará não estava ainda finalizado e inaugurado. Ocorre que a ocupação antecipada pela Gestão da COHAB tinha motivos políticos, visto que os gestores havia sido nomeados pelo governo anterior (Governo César Cals) e pretendiam ter ganho político com a entrega das casas.
Muito sofrimento esperava os novos residentes, a começar pela distância de seus locais de trabalho e estudo, pois as escolas do bairro ainda não funcionavam. A única linha de ônibus que se aproximava do Conjunto Ceará era o Granja Portugal/Centro da empresa Gerema, que, no início, ia apenas até a Praça da Granja, mas depois desceu até dois quarteirões no início da Avenida “A”.
Quando chovia, em muitos lugares, as casas ficavam ilhadas com a concentração de “água nos quintais e frentes. Isso era previsível, pois muitas casas foram construídas em áreas de planícies fluviais do Riacho Tatamundéu (Hoje Canal da quarta) e do Rio Siqueira/Maranguapinho, afluentes do Rio Cocó, que deságua no mar.
Muitas vezes o morador levava dois pares de sapatos ou sandálias, um para ir de sua casa até a parada de ônibus na Granja Portugal, dai outro para o lugar que trabalhava, estudava ou visitava, pois a lama impregnava os calçados.
Uma iluminação pública precária existia, com lâmpadas de filamento de baixa potência, pois a rede de alta-tensão “puxada” de Caucaia, não estava dimensionada para o acréscimo de novos consumidores. Até a empresa de energia efetivar a ligação em seus imóveis, os moradores utilizavam lamparinas e velas à noite.
Com todas essas dificuldades que lhes foram impostas pela precariedade da localização do Conjunto Ceará e sua infraestrutura inacabada, alguns desistiram, mas, a maioria, permaneceu e deu início ao processo de crescimento do lugar e de suas famílias.
Não existiam Igrejas funcionando, nem escolas, farmácias, hospitais ou postos de saúde.
As compras de mantimentos, medicamentos e verduras eram feitas, na maioria das vezes, no Centro de Fortaleza, sendo o Mercantil São José, na rua 24 de maio, um dos mais procurados, pois ficava próximo a parada de ônibus na praça José de Alencar. O comércio da Granja Portugal também atendia os primeiros moradores.
A COHAB não havia construído ainda os pontos comerciais (centrinho comercial) e proibia o comércio nas casas, alegando que os centrinhos nas áreas centrais da UVs logo seriam abertos, assim como uma COBAL, que era uma rede de mercados gerida pelo governo federal, com preços baixos, pois os produtos eram, na maioria, de estoques reguladores do Governo.
Enquanto a ocupação das casas estava ocorrendo, o Governador Adauto Bezerra procurava agendar, ainda em abril de 77, com o Presidente da República Ernesto Giesel, a inauguração da 1a. Etapa.
Enfim a inauguração foi programada, para maio de 1977, na visita que o Presidente General Ernesto Geisel faria ao Estado do Ceará, para inaugurar o prédio da assembleia Legislativa do Estado e uma quadra poliesportiva no José Walter, em Fortaleza.
Algum incomum, para a época, ocorreu. Os moradores insatisfeitos com os problemas que as casas apresentavam, como, por exemplo, afundamento de piso, rachaduras dentre outras coisas chamaram uma emissora de TV e “abriram o trombone”, reclamaram intensamente dos problemas que havia.
A “insurgência” dos moradores chegou aos ouvidos do Palácio do Planalto. A inauguração da 1a. Etapa, durante a visita, foi cancelada e o roteiro mudado para a inauguração, após a Assembleia Legislativa, de um equipamento público no Mondubim (Conjunto José Walter), deixando claro um sinal de insatisfação e ao mesmo tempo de organização dos recém-chegados moradores do Conjunto Ceará, que se preparavam para protestos.
O assunto não ficou restrito apenas ao âmbito da cidade de Fortaleza, pois seria feito uma leitura de reação ao governo ditatorial na mídia nacional. A revista Veja, a Folha de São Paulo e o Estadão, grandes veículos da impressa, relataram o fato e pela primeira vez o nome do Conjunto Ceará chegou a todo o Brasil, antes mesmo de sua inauguração. Meses depois, no dia 10 de novembro, às 19h30, o Governador do Ceará, Cel. Adauto Bezerra, inaugurava a 1º. Etapa do Conjunto Ceará, com 966 casas, sem o Presidente da República.
Começava, assim, uma característica marcante do bairro, diante de todas essas dificuldades, o sentimento coletivo, de comunidade tomou conta de todos. Esse sentimento transformou as dificuldades em elementos ensejadores de soluções, que foram conquistadas ao longo do tempo. As cerquinhas das casas que tiravam a privacidade, possibilitou a interatividade entre vizinhos, reforçando o sentimento de coletividade; A falta de mercearias e açougues, foi superada pela venda de ambulantes que percorriam as ruas vendendo os mais diversos produtos como o “chegadim”, milho verde, tapioca, dentre outros. Era diária a presença do vendedor de pães, do verdureiro e do “figueiro”, o homem que vendia carnes, fígado e ingredientes para panelada, montado em um cavalo, batendo em caixas de madeira. As primeiras festas familiares já contavam com a presença dos vizinhos e logo houve, na metade do ano de 1977, a primeira missa, que foi campal, próximo ao muro do UV1, celebrada por um religioso, que jovens católicos do bairro convidaram da Igreja Sagrado Coração de Jesus, na Av. Duque de Caxias. Sob pressão, a empresa de ônibus tratou de adquirir novos veículos; À primeira farmácia, do Crisóstomo, logo viria aparecer; os centrinhos foram, aos poucos ocupados pelos comerciantes e as avenidas e ruas foram sendo finalizadas.
A SEGUIR COMENTÁRIOS DOS MORADORES MAIS ANTIGOS SOBRE OS PRIMEIROS MOMENTOS NO CONJUNTO CEARÁ
Amaral e Paizinha - Rua 101
Viemos algumas vezes ver a construção. Pegávamos o ônibus Gerema, que ficava na Granja, duas ruas depois da Emílio de Menezes. O ponto final ficava em frente a uma merceariazinha baixinha. A gente subia de pés até aqui. Não havia calçamento. Havia muito buraco, pois estavam colocando o esgoto.